Manhãzinha

Estou na casa da mamãe. Hoje dormi aqui: como poderia deixá-la sozinha só com uma 'diarista'? Quando criança a casa era tão cheia de gente, cachorro, passarinho e até papagaio ( esse chamava até o jardineiro pelo nome, Zé, ô Zé, super amigos, maior intimidade!!!) que jamais pensei vê-la vazia. Mas é que o mundo é assim, já ouviu falar? Concentração de renda, de gente, de "canto", de tudo. Tanta gente sozinha isolada em seus lares- ou não lares e tantas outras em suas casas em festa. Sempre acho que o que não passamos, por vir ainda estarão por chegar. Pro bem ou pro mal... Sou do signo cujo símbolo é a balança e talvez por isto ache não ser justo que ela penda para mais ou para menos só para alguns. 
É cedinho, os passarinhos cantam- é lindo- e os carros voam, provavelmente atrasados para as obrigações dos seus motoristas da cidade grande. Minha mãe mora no primeiro andar de um prédio antigo  muito agradável e gostoso onde o jardim parece fazer parte de uma residência de dois andares, lembrando a casa onde ela morava com meu pai no fim da vida. De vez em quando ao chegar, vejo-a na varanda ao lado de seu fiel companheiro, Toy, um poodle branquinho e amigável, muito mais gente do que a maioria, observando as árvores e fumando seu cigarrinho que tanto mal lhe faz mas que não consegue deixar- há sessenta anos... Agora chove de mansinho. 
Mamãe dorme. Tosse. Dorme e tosse. Quando acordar, sei de cor o ritual: o primeiro cigarro, o cafezinho dormido ainda e um copo d'água. À seguir o computador e esperar que mais tarde tragam seu café da manhã que toma no quarto e as explicação das ordens do dia. Quando saio para minha casa vou sempre muito doída. A fisionomia dela não me sai da cabeça e muito menos do coração. Como chegamos nisso, me questiono. 
Somos quatro irmãos. Quando criança nunca, mas nunca mesmo, um só dia sequer deixou de haver gente lá em casa. Eram tios, avós, primos, amigos, amigos de amigos. Quem nos conhece sabe disso. A parada era obrigatória por puro prazer de se ir na casa da Ligia e do Joacy. Todos os fins de tarde , de segunda a segunda, para um cafezinho que fosse. Claro, foram-se muitos, os mais velhos, os muito doentes, os mais sábios e acho até que os mais humanos. Ficamos nós, sempre angustiados, sem tempo, com problemas e obrigações pessoais e quase apenas elas. Os filhos formaram famílias que passaram a ser duas, os primos por sua vez criaram outros ciclos, claro. Os tios cujos filhos também cresceram tornaram-se patriarcas ou matriarcas de seus próprios núcleos. Sempre foi assim desde que o mundo é mundo. Mas nem sempre foi assim desde que o mundo é mundo. Havia mais união. A vida não era tão corrida, tão dura, tão, tão, tão.... tão!!! A família tornou-se estranha a si própria. Meu pai era um homem sui generis, via longe ( não é porque é meu pai ou porque morreu. é porque era mesmo. Sei ver.) e muito doente que sempre foi, cardíaco desde muito cedo, de coração gigante no duplo sentido da palavra e de fato, costumava dizer vez por outra : coitada da Liginha quando eu me for... Eu sempre retrucava mas ele sorria suavemente e dizia, Lioca, voçê não sabe de nada. Não sei. Nunca soube. Amadureci tardiamente, se é que chegarei a isso algum dia. Já até me achei inteligente uma vez, depois vi que estava enganada. Sou burra. Sempre fui burra. Burra total. Emocionalmente, então, absolutamente deficiente. Estou indo prá casa. Dou um beijo na testa da mamãe e me vou. Vou tentar pintar. Adoro pintar, detesto vender. Fico encabulada mas temos que sobreviver, né? Quem diria na infância que um dia eu me preocuparia com essa reles moeda- o dinheiro-  porque como o poder, transforma as pessoas, mas  infelizmente se faz necessário. Pelo menos para pagar dívidas, comer e aguentar as solicitações dos filhos adolescentes. E eles vão ter que crescer, coitadinhos... Pra quê os pus no mundo? Por egoísmo e/ou inconsequência. 
Bom, agora Inês é morta. É seguir da melhor forma que der. 
E Vamos pra frente. 

/Relatos do dia 09 de dezembro do pior ano recente de toda a humanidade, 2020 - 07:14 da matina.

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